terça-feira, 27 de março de 2018

Diógenes

Quem não preferiria
a companhia dos cães?
Quem não viveria
sendo escravo de ninguém
e nem sendo Senhor também?

As leis dos homens
mudam todas as semanas
a lei da natureza entretanto
persiste

o prédio tomba
o vil metal se corrói
o tempo ardiloso tudo destrói

adoramos essas sombras na parede
o amor eterno
o governo justo
o Deus perfeito
mas onde eles estão?

Para onde varremos
o choro
o bile
o sangue
o sêmem?
Onde escondemos nossas vergonhas
e porque o fazemos?

Alguns juntam coisas e mais coisas
outros se empertigam para dizer
eu sou isso
eu sou aquilo
e o que realmente somos?
E o que nós todos
tão falhos e pequenos
podemos realmente ser
ou querer ser?

Qual o próposito que me agita
senão o do animal
que eu sou?
Casamento? Não, obrigado.
Esses títulos todos?
Não, obrigado.
Esse compromisso com o que me despreza
com o que me aprisiona
que depõe contra minha natureza
contra a minha liberdade tão inerente?
Não, obrigado.

Quem se alimenta das nossas ilusões?
Que interesses atendemos quando vamos contra nossa natureza?
Quem foi que nos enganou esse tempo todo e o que ganha com isso?

Eu sou o Cão

Diógenes sentado em seu barril cercado por cães. 
Pintura de Jean-Léon Gérôme de 1860.

"Uma inquebrantável decisão de viver uma vida simples e despojada, uma devoção afincada à autossuficiência, um vínculo sem paralelos com a liberdade de expressão, um desdém saudável pela estupidez e pelo obscurantismo humanos, um nível incomum de lucidez intelectual e, acima de tudo, uma tremenda coragem de viver segundo suas convicções” – Navia, Diógenes o Cínico, p. 18

https://razaoinadequada.com/filosofos-essenciais/diogenes/

domingo, 25 de março de 2018

(H)Ell[en]

olhei soslaio
displicente
e vi o seu brilho
sei que foi de repente

senti as curvas delicadas
nos teus gestos suaves
balancei com seu quadril
meu coração quase se partiu
peguei os caquinhos de vidro coloridos no chão
alguns chamados tristeza
outros chamados paixão
e montei um pequeno mosaico de você

e eu amei o que escolhi ver
e suspirei no seu resfolegar quando nos beijamos
corri o dedo entre seus cabelos
e ali eu me amarrei

como menino sonhador que sou
sonhei sonhei
eu não te ocupei
eu não te dominei
eu não colonizei
eu só suspirei
e sonhei
sonhei

estive ali

vi nós dois na roça, andando na mata
capturando a luz e mostrando ao outro
e a estrada corria veloz debaixo de nós
e nossos amigos já nos conheciam como um
e eu cheguei em casa, pra ver você esparramada

na nossa cama

e eu estava apagado
e você reacendeu essa chama

foi mesmo alucinado
infundado
e rápido demais

Mas essa alucinação me debulhou em sinceras lágrimas
como um cego eu gritei
Eu pude ver!
Eu pude ver!
Com olhos ensopados eu sorri
Eu vi
Eu vi

não olhei pros lados
nem olhei pra trás
só vi a porta encostada e abri

fui lá e voltei
o que eu falei ou escrevi
eu já não sei
o que senti, no entanto, ficou aqui

forte demais
sem tato
agressivo até
desritmado
fora do passo
sem a cadência

você não me ouviu
a ligação caiu

ficou como uma concha cerrada
uma presa assustada
guardou para si a pérola do sorriso
olhou pra trás e fugiu

e já não sei como puxar papo
como recomeçar devagar
talvez seja o momento de esperar
ou partir
respeitar o espaço
ou levantar mesmo a cabeça
e caminhar sem pressa
sabendo que reconquistei a mim mesmo
e gestado um ano inteiro
finalmente renasci
esse sorriso sincero
essa auto estima restaurada
esse interesse genuíno pela vida!
esse otimismo infundado
agora estão aqui

domingo, 18 de março de 2018

Uma pessoa são várias pessoas
De manhã sou um
De tarde sou outro
Consistente nas correntezas que me arrastam pra lá e pra cá
Já desisti de pousar
Resolvi voar voar
E quem te deu a verdade?
Como tomou posse desse símbolo poderoso
E como decidiu o que é moral e imoral?
O que te move eu não sei
O que me move
Eu também não sei
Não sabemos nada
Tudo está solto fluído vaporoso
Estamos fazendo só o que podemos
Com o que nos foi dado
Eu particularmente sei
Nunca cometi um ato deliberado de maldade
Sei o que eu sou
A porta aberta que nunca poderá ser fechada
Menino bobo
Astronauta
Poeta secreto
Eterno aspirante a se tornar música
Na vibração intensa dos momentos
Fonte morna que transborda
Riso fácil
Olhos brilhando, tão cansados
Cabeça de nuvem
Eu sou mesmo esse menino
Intenso
Incoerente
E tão amoroso
Eu sei eu sei
Me julgas pelos seus padrões
Eu já não os tenho
Pela vontade eu tento
Ser além do homem
Sempre além
Sempre além
Acho que você podia tentar também
Mas pra te aconselhar eu não sou ninguém

De manhã eu sou triste
A noite feliz
De manhã triste de novo
Ou vice versa

Eu quero
Eu mereço
Eu posso

Eu sou a onda que bate na praia
Sou o vento em meus cabelos
Sou o sol nos meus olhos
Eu sou o fogo
Eu sou o fogo
Sou a luz
Sou a rocha
E esses bichos todos
Tudo que falou sobre mim é verdade
Tudo o que esqueceu também

Não posso mais esconder ou fingir
Já não quero me redimir
As forças da natureza que me trouxeram aqui
Não se importam com nada

De resto só não temos o tempo
Aquele velho cruel

segunda-feira, 12 de março de 2018

Eu to aqui, no meu cantinho
esperando de todo coração
que você esteja bem

Sköll

The beast in me is caged by frail and fragile bars, restless by day,
and by night rants and rages at the stars.(Johnny Cash)

me deram as jóias mais bonitas
e eu as devorei
me ofereceram as duas mãos
e comi suas almas
segui o sol
insaciável
e traguei todo seu calor
num sopro displicente
o dia se apagou
e eu exasperado
procurei algo mais
para matar a fome que me enchia de agonia
no escuro eu esperei uma estrela
para que pudesse consumi-la
tive de tudo e não me foi o bastante
e o demônio que eu mais odeio
sou eu mesmo
então eu privei o mundo de mim
hibernei
catatônico
dormente mantive os vidrados olhos arregalados
esperando alguém que aguente toda carga da minha alma pesarosa
ou até que a solidão
tão aguda
apazigue meu espírito inquieto



O fogo ainda é uma brasinha
e eu assopro, assopro ou espero
até que irrompas em chamas

será que eu perdi o tato
ou o perdemos todos?
ainda existe compasso
ainda existe ritmo
ainda sabemos dançar?
Há vontade?

o que está implícito
não está posto para os brutos
as mãos ásperas tem pressa
e não se espera mais o tempo da natureza

estamos conectados em bandas largas onde na correria atropelamos corações

o neon do balanço orgiástico etílico
o sufoco do gelo seco, do rum, do gin, do cigarro
o beijo como brincadeira
o afastamento
o puxão
o constrangimento
o obsceno
aquele calor morno
sem dizer que sim nem que não
este tem sido o ritmo
do meu coração

dancei dancei e sorri
fui triste mais uma noite,
nem vi
terminei sozinho mesmo com alguém ao meu lado
no domingo a noite o gosto amargo
de quem de novo fez tudo errado

já cantei essa canção
essa é minha maldição minha maldição
minha auto imposta maldição

onde achar alguém perfeito? onde se esconde o pomo dourado do eterno desejo?
o bom é mesmo rolar incompleto?
feliz sozinho?
teria alguém a paciência? teria eu mesmo plena consciência?

a estrada
diante de mim
parece tórrida e longa
daquelas que do sertão levam ao mar
debaixo do árido céu

azul profundo

domingo, 4 de março de 2018

Impressões sobre Ellen ou vamos embora pra Passárgada

Nem todos poemas 
tem um nome 
Se esse tivesse 
Seria o seu 

Lembro bem
Daquela noite enevoada e barulhenta
Em que 
Enebriado e embriagado 
eu te vi

Pela primeira vez 

Estava sentada 
Imóvel 
Lânguida 
Tal como uma estátua de mármore carrara
E eu ali num regalo 
Já estava pronto para cair a seus pés 

Você tinha sua própria luz 
E eu era uma mariposa 
Você pareceu linda e fatal como o fogo 
Que ardia fraco 
Nas suas curvas delicadas
Mas na superfície não eras nem morna 
Como um vulcão inativo 
Que poderia a qualquer momento 
Explodir 
Se assim resolvesse 

Minha alma capturada num instante de clareza 
Me fazia sentir 
Um perigo de não mais me pertencer 
Como num amor longamente esquecido 
Que poderia novamente me arrebatar 
A paragens lindas e terríveis 

Virou-se com elegância 
Nem sei se me notou 
Ainda bem 

Se me oferecesse um sorriso 
Cairia a seus pés 
Como alguém que faz um trato com o Diabo 
E perde a eternidade 
Pela ilusão de possuir o mundo 

A lascívia e a devassidão em mim 
Não poderia jamais alcançá-la
Eu não ousaria te tocar 
Mas se o fizesse 
Tenho certeza 
Eu explodiria numa supernova branca e vermelha 
Que dissolveria uma vez mais 
Minha individualidade 
Numa dança cósmica 
Em que a destruição assume aquele aspecto 
Tão bonito 
Em que as vagas lentidões dos milênios infindáveis 
Escondem a força e o calor esmagadores 
Da morte das estrelas que consomem umas às outras 
E fazem os minúsculos seres de carbono 
Evaporar 

De sobressalto me mantive distante 
E me pus a adorar em segredo 
No silêncio respeitoso que se presta 
Aos deuses da morte 

Quando te vi pela segunda vez 
Também não me atrevi a cumprimentá-la 
Como poderia eu ser tão insolente 

E na conversa esparça
Eu te tornei humana 
Vi sua melancolia 
E as desesperanças e as fraquezas 
Como os delicados anjos condenados 
Com que Deus adornou 
A cúpula escura do inferno 
E seus lamentos agudos 
Só poderiam ser ouvidos 
Pelas almas penadas que ainda ousam sonhar 
E olhar para cima 
Presos aos círculos mais baixos 

A sua tristeza também era luz 
Que me cegava e confundia 
Como poderíamos, ser delicados, inteligentes e bons
E ao mesmo tempo 
Felizes 

E como as palavras num encantamento 
Poderiam desfazer esses grilhões todos 
Que nos limitam e nos atam 
E como o diálogo inesgotável
Poderia nos fazer alcançar 
A alma um do outro 
Como meus dedos escuros
Poderiam se entrelaçar 
Na sua alva mão 
E como poderíamos então caminhar 
Juntos 
Sendo a única esperança e o único refúgio um do outro 
Vivendo o único sonho possível 
Nesses vales tão escuros 
Em que pessoas tão cruéis 
Machucam umas às outras 
Ignorando também que machucamos 
Outras pessoas 
Para então simplesmente nos recusar a sermos como eles
A mentir, a abandonar, a não desistir jamais 
Pelo menos um do outro

Eu vi sua imagem eu te coloquei um véu de noiva 
Vesti o seu dedo com a aliança que jamais perde o brilho 
E num instante, vivi até a eternidade ao seu lado 
Envelheci naquele segundo 
O mundo se apagou e você brilhou. 

Eu não sei se esse sonho em algum tempo é real 
Ou se sua imagem vai se desvanecer 
Como os vapores de que parece ser feita 
Ganhando as alturas a que pertence 
Para se juntar à luz azulada da lua 
De que as alucinações parecem ser feitas 

De qualquer modo 
Eu que não sou ninguém 
Estou aqui guardando 
Um pequeno poema com seu nome 
Nessa ínfima fração da eternidade 
Para te fixar na parede da minha memória 
E te erigir um singelo altar 
E para dizer 
Como um louco! 
Que por alguns instantes ao menos 
E sem razão 
Como sempre é 
Que eu também te amei 

Me juntei à procissão 
Dos poucos homens sensíveis 
Que te viu 
Que te adorou 
E que, digo novamente, te amou. 

Existe amor a primeira vista?
Afinal, existe o amor?
Se essas coisas pudessem ser verdade 
Mesmo que num sonho besta 
Eu te diria 
Que não foi às primeira vista 
Como no ilusório reencontro de almas antigas 
Como nos fados antigos de quando se acreditava no amor 
Não foi a primeira vista 
Porque naquele vislumbre existiu uma vida inteira 
E eu a vivi, com seus encantos e desencantos 
Te tomei pela primeira vez 
E até caí na rotina 
Eu vi tudo 
E resolvi aqui registrar 
E tudo que posso fazer é me expor 
Ao ridículo
Como todo amor é ridículo
Sem muita esperança de te agradar 

Sempre disse que escrevo pra mim mesmo 
E aqui estão 
Como perguntou 
Todas as impressões que tive 
Quando pela primeira vez te vi 
Esse é afinal, um poema para o Diabo. 

Dizem que cada um tem 
O amor que acha que merece 
Eu sou o poeta
Que sem mentir
Ousou sonhar com o impossível.