segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Cão

Estive na biblioteca municipal no início da semana, onde peguei a Divina Comédia de Dante para finalmente matar minha curiosidade. Qual não foi minha surpresa, quando encontrei dobrado entre as primeiras páginas, um grande número de folhas manuscritas. Depois de passar o olho percebi que se tratava de um conjunto de anotações que tinha um tema um tanto banal, cachorros.

Talvez não fosse por acaso que aquelas folhas estavam onde estavam, porque no Primeiro Canto da Comédia, Dante achou-se num lugar descrito nos seguintes termos:

“Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. [...] E depois veio uma loba, magra e cobiçosa, cuja visão tornou minha alma tão pesada, pelo medo que me possuiu, que não vi mais esperança alguma na escalada. A loba avançava, lentamente, e me fazia descer, me empurrando de volta para aquele lugar onde a luz do Sol não entra.”

Quando Virgílio lhe aparece, não como homem, mas em forma de sombra, ele suplica: “Eu não subi o monte por causa dessa fera. Ela me faz tremer os pulsos. Ajuda-me, sábio famoso! Ajuda-me a enfrentá-la!”.

Curioso notar que estas palavras não constavam na grande compilação de referências e trechos de obras conhecidas sobre o tema. Talvez o escritor tivesse por Dante o mesmo sentimento que este tinha por Virgílio. Digo isso porque seu estilo era um tanto sombrio e de temática eminentemente mística, por assim dizer.

Enquanto lia, me perguntava, onde estão Lessie, Pluto, Scooby-doo, Snoopy, Bidu e os outros...? Mas não o fazia sem certo deboche desrespeitoso. Na verdade, achei tudo uma tremenda perda de tempo e estive prestes a jogar no lixo, mas considerei que talvez o redator pudesse querer aquelas folhas de volta.

Foi quando estava para devolver o livro que a história ganhou um novo tom para mim. Perguntei para a senhora da biblioteca se poderia me dizer qual a última pessoa a consultar o livro, ela olhou para os lados, aproximou-se de mim e me contou sobre aquele garoto.

Ele havia se matado uma semana antes de eu locar o livro. Na verdade, era tido como um garoto louco, um excêntrico. Seu rosto havia sido desfigurado por um ataque de cão, fazia seis anos. A senhora, acrescentou: “ficou completamente desfigurado e nunca recuperou a razão, quanto a mim, fico feliz que tenha morrido, assim não volta a frequentar esta biblioteca”.

O impacto dessa tragédia foi tão grande em mim, que li com atenção aquele manuscrito, que agora parecia o único legado de uma vida breve, um testemunho de seu tormento e dor.

Parecia começar pelos mais antigos relatos, Cérberus o terrível cão de três cabeças, inimigosde Zeus, que guarda a entrada do Inferno. Depois Fenrir, o temível lobo “que irá devorar Odin no Crepúsculo dos Deuses”. Nesse trecho, escreveu na margem da folha: “Cave canem ‘cuidado com o cão’ – alertava um mosaico em Popéia, porque não fui alertado?”

No Talmude eram considerados impuros por se alimentares de restos, fosse de cadáveres, fosse de lixo. Havia uma longa tradição cristã associando o cão ao demônio, especialmente cães negros. Transcreveu com detalhes sórdidos a carnificina acontecida em Loa em 1721, por um cão que os locais chamaram de “tinhoso”. Parecia emendar uma história a outra, dando-lhe um fim, quando transcreveu a ordem de Maomé para exterminar os cães.

Passava pela Literatura, que indicava um grande volume de leitura. O mais terrível deles, um cão negro, de olhos e a boca saltando fogo, sempre espreitando no escuro, ano após ano, século após século...o cão dos Baskerville.

Também fazia referências mais prosaicas, que chegavam a se diferenciar das demais, por parecerem muito banais. Uma que me levou aos risos foi o de São Guinefort, de Cornwell, um dos poucos animais a virarem santos - talvez o primeiro cão - e que teria vantagem sobre os demais assistentes de Deus, pela sua insistência e lealdade. Outro era o temível “Legião”, cão assim chamado por ter sido possuído por um número tal de demônios, no caminho do mago.

No rodapé da última folha, seus rabiscos concluíam: “Os nominalistas afirmam que passaríamos toda a eternidade sem encontrar um arquétipo, enganam-se, eu encontrei um naquele fatídico inverno de seis anos atrás”.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A Lamia

A rotina nessa chuva era ainda mais insuportável. Parecia estar sozinho na rua, mas não havia notado. Na ponte, de sobressalto, parou. Olhou para o rio abaixo de si; que num torvelinho ruidoso serpenteava do mangue para o mar. Água escura, profunda e disforme pareceu envolvê-lo como um enigma. Foi quando um fio d'água esticou-se enroscando o jovem. Língua bifurcada lambeu seu ouvido. Dois pares de mãos o acariacaram. Uma Lamia! -Venha deitar-se comigo no Leito do Rio -sibilou sedutora. O garoto se debruçou ainda mais; contudo, uma mão ríspida caíu sobre seu ombro. -Cuidado refece, vai cair! - Disse o velho marinheiro ao seu lado.

segunda-feira, 19 de julho de 2010


Quando consideramos como é vasto e próximo de nós o problema da existência, essa existência ambígua, perturbada, fugidia, semelhante a um sonho - um problema tão grande e tão próximo, que encobre e sobrepõe todos os outros problemas e finalidades logo que tomamos consciência dele - e quando consideramos que todos os homens, com excessão de alguns poucos, não são claramente conscientes desse problema, nem parecem perceber sua existência, mas se preocupam antes com qualquer outro assunto e vivem apenas no dia de hoje sem levar em conta a duração não muito longa de seu futuro pessoal, seja renegando expressamente aquele problema, ou contentando-se em relação a ele com algum sistema da metafísica popular; digo, quando consideramos tudo isso, podemos chegar à conclusão de que o homem só pode ser chamado de ser pensante num sentido muito amplo. Nesse caso, não nos surpreenderá nenhum gesto de irreflexão ou tolice, pois saberemos que o horizonte intelectual do homem normal pode até ultrapassar o do animal - cuja existência sem nenhuma consiência do futuro e do passado, é inteiramente presente -, mas não está tão distante deste quanto se supõe.

- Schopenhauer. A arte de escrever. Porto Alegre:L&PM, 2010. p. 53-54

sábado, 12 de junho de 2010

“O homem vê-se frequentemente indefeso diante de uma realidade externa que é tremendamente complexa. Arma, então, esquemas e racionalizações para interpretar essa realidade. A história humana é a história dessas tentativas racionalizantes que tantas vezes fracassam. Pensa que tais tentativas têm algo de ilusório na sua origem, que a sua validade é só parcial?”

Eu estava aqui a querer fazer uma crítica krishnamurtiana, ou zen, das ideologias políticas. Mas a resposta foi curta: “Não”, disse Borges. “O que acontece é que essas racionalizações são parte da realidade que querem explicar. Nós vivemos dos sonhos dos mortos, dos esquemas dos mortos. O mundo pode parecer um caos, mas nós tratamos de que seja um cosmos, uma ordem.”

-Carlos Cardoso Aveline

segunda-feira, 24 de maio de 2010


“A única diferença entre um louco e eu, é que eu não sou louco.”
Salvador Dali

sexta-feira, 7 de maio de 2010

~ Gibran Kahlil Gibran ~

A borboleta continuará a pairar sobre o campo e as gotas de orvalho ainda brilharão sobre a relva quando as pirâmides do Egito estiverem destruídas e não mais existirem os arranha-céus de Nova York.


sexta-feira, 26 de março de 2010

“E dentre os gregos, tu que és um deles, quais te parecem levar a vida mais agradável, os que mandam ou os que obedecem?

- Eu, diz Aristipo, não me incluo entre os escravos; mas parece-me haver uma via intermediária onde tento caminhar. Esta via não passa nem pelo poder, nem pela escravidão, mas pela liberdade, que é o grande caminho da felicidade.

- Se este caminho não passa nem pelo poder nem pela escravidão, replica Sócrates, não passa tampouco pela sociedade dos homens, o que dizes poderia ter algum sentido. Mas se vivendo entre os homens, tu não queres nem mandar nem obedecer, nem servir de bom grado aos que mandam, tu não ignoras, penso eu, como os mais fortes se decidem a fazer chorar os mais fracos e tratá-los como escravos. Ou não vês como eles roubam as colheitas que outros semearam... e como cercam de todos os modos os que se recusam a servilos, até levá-los a preferir a escravidão à luta com os mais fortes que eles...

- Sim, disse ele; eu, porém, para evitar estes males, não me encerro numa cidade, em qualquer lugar sou estrangeiro.

- Não há dúvida, exclamou Sócrates, que é este um hábil artifício.”


Xenefonte, As Memoráveis
(II, I) apud Castel, 1978
a.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Tempo. Inexorávelmente, com o tempo, tudo se consumirá e deixará de existir, como o fez antes de nós.

Carne. Inexorávelmente, estaremos presos à carne, pois em verdade isso é tudo que somos. Fora da carne só existe a imaginação, seja arte ou religião.

Tempo, carne, imaginação. Fora da cabeça, os olhos se debruçam, querendo saber o que se passa. Não lhe ocorre, que existem cores que não vê, ou mesmo dimensões que lhe escapam. Dentro da cabeça, impulsos elétricos se unem, expandem, separam, brilham, achando que pensam, achando que são uma alma. Assim, o desespero, seja arte ou religião, lhes ocorre.

Essa é exatamente a inteligência da banalidade.

Superá-la enfrentando moinhos de vento, não é menos nobre que desenhar grandes prédios, pintar sorrisos enigmáticos, voar, escalar, nadar, correr, saltar. Quando encontramos outro louco, mesmo que enrustido como eu e você. Sorrimos com um brilho sutil no olhar. Sorrimos em reconhecimento.

De todas as maneiras de imaginar, a literatura sempre acaba sendo o destino da minha viagem através das possibilidades. Não pelo talento, mas pela sinceridade.