Estive na biblioteca municipal no início da semana, onde peguei a Divina Comédia de Dante para finalmente matar minha curiosidade. Qual não foi minha surpresa, quando encontrei dobrado entre as primeiras páginas, um grande número de folhas manuscritas. Depois de passar o olho percebi que se tratava de um conjunto de anotações que tinha um tema um tanto banal, cachorros.
Talvez não fosse por acaso que aquelas folhas estavam onde estavam, porque no Primeiro Canto da Comédia, Dante achou-se num lugar descrito nos seguintes termos:
“Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. [...] E depois veio uma loba, magra e cobiçosa, cuja visão tornou minha alma tão pesada, pelo medo que me possuiu, que não vi mais esperança alguma na escalada. A loba avançava, lentamente, e me fazia descer, me empurrando de volta para aquele lugar onde a luz do Sol não entra.”
Quando Virgílio lhe aparece, não como homem, mas em forma de sombra, ele suplica: “Eu não subi o monte por causa dessa fera. Ela me faz tremer os pulsos. Ajuda-me, sábio famoso! Ajuda-me a enfrentá-la!”.
Curioso notar que estas palavras não constavam na grande compilação de referências e trechos de obras conhecidas sobre o tema. Talvez o escritor tivesse por Dante o mesmo sentimento que este tinha por Virgílio. Digo isso porque seu estilo era um tanto sombrio e de temática eminentemente mística, por assim dizer.
Enquanto lia, me perguntava, onde estão Lessie, Pluto, Scooby-doo, Snoopy, Bidu e os outros...? Mas não o fazia sem certo deboche desrespeitoso. Na verdade, achei tudo uma tremenda perda de tempo e estive prestes a jogar no lixo, mas considerei que talvez o redator pudesse querer aquelas folhas de volta.
Foi quando estava para devolver o livro que a história ganhou um novo tom para mim. Perguntei para a senhora da biblioteca se poderia me dizer qual a última pessoa a consultar o livro, ela olhou para os lados, aproximou-se de mim e me contou sobre aquele garoto.
Ele havia se matado uma semana antes de eu locar o livro. Na verdade, era tido como um garoto louco, um excêntrico. Seu rosto havia sido desfigurado por um ataque de cão, fazia seis anos. A senhora, acrescentou: “ficou completamente desfigurado e nunca recuperou a razão, quanto a mim, fico feliz que tenha morrido, assim não volta a frequentar esta biblioteca”.
O impacto dessa tragédia foi tão grande em mim, que li com atenção aquele manuscrito, que agora parecia o único legado de uma vida breve, um testemunho de seu tormento e dor.
Parecia começar pelos mais antigos relatos, Cérberus o terrível cão de três cabeças, inimigosde Zeus, que guarda a entrada do Inferno. Depois Fenrir, o temível lobo “que irá devorar Odin no Crepúsculo dos Deuses”. Nesse trecho, escreveu na margem da folha: “Cave canem ‘cuidado com o cão’ – alertava um mosaico em Popéia, porque não fui alertado?”
No Talmude eram considerados impuros por se alimentares de restos, fosse de cadáveres, fosse de lixo. Havia uma longa tradição cristã associando o cão ao demônio, especialmente cães negros. Transcreveu com detalhes sórdidos a carnificina acontecida em Loa em 1721, por um cão que os locais chamaram de “tinhoso”. Parecia emendar uma história a outra, dando-lhe um fim, quando transcreveu a ordem de Maomé para exterminar os cães.
Passava pela Literatura, que indicava um grande volume de leitura. O mais terrível deles, um cão negro, de olhos e a boca saltando fogo, sempre espreitando no escuro, ano após ano, século após século...o cão dos Baskerville.
Também fazia referências mais prosaicas, que chegavam a se diferenciar das demais, por parecerem muito banais. Uma que me levou aos risos foi o de São Guinefort, de Cornwell, um dos poucos animais a virarem santos - talvez o primeiro cão - e que teria vantagem sobre os demais assistentes de Deus, pela sua insistência e lealdade. Outro era o temível “Legião”, cão assim chamado por ter sido possuído por um número tal de demônios, no caminho do mago.
No rodapé da última folha, seus rabiscos concluíam: “Os nominalistas afirmam que passaríamos toda a eternidade sem encontrar um arquétipo, enganam-se, eu encontrei um naquele fatídico inverno de seis anos atrás”.
Talvez não fosse por acaso que aquelas folhas estavam onde estavam, porque no Primeiro Canto da Comédia, Dante achou-se num lugar descrito nos seguintes termos:
“Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. [...] E depois veio uma loba, magra e cobiçosa, cuja visão tornou minha alma tão pesada, pelo medo que me possuiu, que não vi mais esperança alguma na escalada. A loba avançava, lentamente, e me fazia descer, me empurrando de volta para aquele lugar onde a luz do Sol não entra.”
Quando Virgílio lhe aparece, não como homem, mas em forma de sombra, ele suplica: “Eu não subi o monte por causa dessa fera. Ela me faz tremer os pulsos. Ajuda-me, sábio famoso! Ajuda-me a enfrentá-la!”.
Curioso notar que estas palavras não constavam na grande compilação de referências e trechos de obras conhecidas sobre o tema. Talvez o escritor tivesse por Dante o mesmo sentimento que este tinha por Virgílio. Digo isso porque seu estilo era um tanto sombrio e de temática eminentemente mística, por assim dizer.
Enquanto lia, me perguntava, onde estão Lessie, Pluto, Scooby-doo, Snoopy, Bidu e os outros...? Mas não o fazia sem certo deboche desrespeitoso. Na verdade, achei tudo uma tremenda perda de tempo e estive prestes a jogar no lixo, mas considerei que talvez o redator pudesse querer aquelas folhas de volta.
Foi quando estava para devolver o livro que a história ganhou um novo tom para mim. Perguntei para a senhora da biblioteca se poderia me dizer qual a última pessoa a consultar o livro, ela olhou para os lados, aproximou-se de mim e me contou sobre aquele garoto.
Ele havia se matado uma semana antes de eu locar o livro. Na verdade, era tido como um garoto louco, um excêntrico. Seu rosto havia sido desfigurado por um ataque de cão, fazia seis anos. A senhora, acrescentou: “ficou completamente desfigurado e nunca recuperou a razão, quanto a mim, fico feliz que tenha morrido, assim não volta a frequentar esta biblioteca”.
O impacto dessa tragédia foi tão grande em mim, que li com atenção aquele manuscrito, que agora parecia o único legado de uma vida breve, um testemunho de seu tormento e dor.
Parecia começar pelos mais antigos relatos, Cérberus o terrível cão de três cabeças, inimigosde Zeus, que guarda a entrada do Inferno. Depois Fenrir, o temível lobo “que irá devorar Odin no Crepúsculo dos Deuses”. Nesse trecho, escreveu na margem da folha: “Cave canem ‘cuidado com o cão’ – alertava um mosaico em Popéia, porque não fui alertado?”
No Talmude eram considerados impuros por se alimentares de restos, fosse de cadáveres, fosse de lixo. Havia uma longa tradição cristã associando o cão ao demônio, especialmente cães negros. Transcreveu com detalhes sórdidos a carnificina acontecida em Loa em 1721, por um cão que os locais chamaram de “tinhoso”. Parecia emendar uma história a outra, dando-lhe um fim, quando transcreveu a ordem de Maomé para exterminar os cães.
Passava pela Literatura, que indicava um grande volume de leitura. O mais terrível deles, um cão negro, de olhos e a boca saltando fogo, sempre espreitando no escuro, ano após ano, século após século...o cão dos Baskerville.
Também fazia referências mais prosaicas, que chegavam a se diferenciar das demais, por parecerem muito banais. Uma que me levou aos risos foi o de São Guinefort, de Cornwell, um dos poucos animais a virarem santos - talvez o primeiro cão - e que teria vantagem sobre os demais assistentes de Deus, pela sua insistência e lealdade. Outro era o temível “Legião”, cão assim chamado por ter sido possuído por um número tal de demônios, no caminho do mago.
No rodapé da última folha, seus rabiscos concluíam: “Os nominalistas afirmam que passaríamos toda a eternidade sem encontrar um arquétipo, enganam-se, eu encontrei um naquele fatídico inverno de seis anos atrás”.