quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

A Imortalidade - Kundera

E Agnès pensa: o Criador colocou no computador um disquete com um
programa detalhado, e depois foi embora. Que depois de criar o mundo,
Deus o tenha deixado à mercê de homens abandonados, e, ao se dirigir a
Ele, caem num vazio sem eco, esta ideia não é nova. Mas se ver
abandonado pelo Deus de nossos antepassados é uma coisa, e uma outra é
ser abandonado pelo inventor divino do computador cósmico. Em seu lugar
fica um programa que se desenrola implacavelmente em sua ausência, sem
que se possa mudar o que quer que seja.
Programar o computador; isso não quer dizer que o futuro seja
planejado em detalhes, nem que "lá em cima" tudo esteja escrito. Por exemplo, o programa não estipulava que em 1815 ocorresse a batalha de
Waterloo, nem que os franceses a perdessem, mas apenas que o homem é
por natureza agressivo, que a guerra lhe é consubstanciai, e que o
progresso técnico a tornará cada vez mais atroz. Do ponto de vista do
Criador, todo o resto é sem importância, simples jogo de variações e de
permutas num programa geral que nada tem a ver com uma antecipação
profética do futuro, mas determina apenas o limite das possibilidades;
entre esses limites deixa todo o poder ao acaso.
O homem é um projeto do qual pode-se dizer a mesma coisa. Nenhuma
Agnès, nenhum Paul foi planejado num computador, mas apenas um
protótipo: o ser humano, tirado em miríades de exemplares que são
simples derivados do modelo primitivo, que não tem nenhuma essência
individual. Não mais essência individual do que tem um carro saído da
fábrica Renault. A essência do carro tem de ser procurada além desse
carro, nos arquivos do construtor. Apenas um número de série distingue
um carro do outro. Num exemplar humano, o número é o rosto, esse
conjunto de traços acidental e único. Nem o caráter, nem a alma, nem
aquilo que chamamos o eu se distinguem nesse conjunto. Esse rosto
apenas numera um exemplar.

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