domingo, 25 de outubro de 2015

Tarde de Maio


Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de
seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa…
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita sem máscaras?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.
(Drummond)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Quero misturar o meu café no seu leite
Quero que meu leite seja seu deleite
Quero misturar seu leite no meu calor
E assim vou te devorar
Uma mordidinha de cada vez

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Quando eu morrer
Não quero caixão de madeira de lei
nem quero que nenhuma lei
que não segui
se imponha sobre minha figura paralisada pela rigidez da morte.

Quando eu morrer
só quero uma coisa
que se reúnam ali meus amigos
num bate papo animado sobre nossas histórias
e repitam várias vezes
jaz ali um homem que viveu.

Quando eu morrer
quero todos os meus segredos expostos
por todos aqueles e aquelas que amei
para que costurem um retrato fragmentado
Minha imagem confusa vai sobreviver por um instante
enquanto durar a memória daqueles que falarem sobre mim.

Quando eu morrer
também não quero que falem só bem de mim
dando a impressão de que tombou um santo, ou qualquer espécie de herói
quero que me xinguem, deixem que cuspam em minhas flores fedorentas
exijo essa aparência natural, crua, animalesca, que tanto venero em vida.

Quando eu morrer
quero que o corpo que fui
apodreça e seja abandonado
mas exijo dos meus amores
histórias sobre mim, que gerem gargalhadas e reflexões
não vou sobreviver nem me perpetuar assim, acabarei
mas enquanto vivo, eu sou.

" Sou nada mais que um poeta: amo a todos, ando errante pelo mundo que amo." (Pablo Neruda)
Em qual leite se banhou?
De onde retirou a seda dos seus cabelos?
As pérolas que coroam seu sorriso vem de que profundezas?
Que estrelas roubastes para o lume de teus olhos?
Com que delicadas rosas pintou seus mamilos?
A natureza viceja em suas curvas cheias de pudores
Seu rubor só aumenta o chamado. 
Um relâmpago vermelho
incendiou o lugar onde vivo
desnorteado tropeço
enquanto o diabo me ignora e ri
Mas em minha morte solitária
eu sei
que o fogo que arde em mim
é feito de você.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Pareço aquele campo que espera a chuva que fertiliza
A árida espera embota minhas lágrimas
Que num murmurinho morrem como a água que evapora direto da nascente
Mas alguns lugares são sempre inférteis
Às vezes me acho um deserto

Nada Fica

Nada Fica

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
Ricardo Reis